Nesta edição do Cronofobia:
O tema principal
E Não Sobrou Nenhum
Chants of Sennaar
Axiom Verge 2
Universim
Cyberpunk 2077
The Kitchen
Poor Things
Tempo de leitura: ± 7 minutos
O tema principal
A Inglaterra do século XVII tomou uma pá de decisões erradas — sério, um montão mesmo. Dentro desse track record invejável, ninguém imaginaria que um naviozinho sem vergonha viraria a estrela de uma história tão fascinante.
Imagine o diálogo (leia com sotaque inglês bem arrastado, bem fancy e bloody e posh):
— Galerinha, essa Espanha tá pedindo uns sopapos, vamos dar uma zoada? O que acham da gente invadir uns povoados deles ali da América do Sul? Só pra dar uma apavorada?
— Quais povoados, ó senhor comandante da marinha inglesa?
— Aí que tá: eles esperam que a gente invada esses povoados daqui, desse lado, no oceano Atlântico. Porém — disse ele fazendo cara de gestor que vai pedir algo impossível pro time de desenvolvedores — e se a gente invadisse pelo Pacífico????
— Mas senhor, como a gente chega lá? É compli…
— Ué, simples, só dar a voltinha ali pelo sul da América do Sul. Coisa rápida, pá-pum.
— Com todo o respeito, essa zona é muito complexa de se navegar. Existem cartas marítimas mostrando a dificu…
— Amigão, você já ouviu o ditado “sem saber que era impossível, ele foi lá e fez”? Pois é, vamos logo com isso que é pra entregar resultado rapidinho. Vocês começam segunda.
E, como uma reunião tradicional em qualquer startup, a história do navio HMS Wager começou — e ela incluiu dois naufrágios, briga de amigo, briga de inimigo, cachorro caramelo e plot-twists irônicos.
O nome do navio era Wager (a aposta) e do capitão era Cheap (que, em alguns lugares, pode ser traduzido como mão-de-vaca). A tragédia anunciada.
É claro que o mar não tá pra peixe
Navegar é preciso, mas muito difícil: não tem placa; se furar o pneu não tem como levantar o navio; se acabar o vento e não tiver motor, fodeu.
Porém, se você manja do que tá fazendo, tem ciência que existem correntes marítimas — ou seja, igualzinho a correnteza do rio, só que no oceano. Se você assistiu ‘Procurando Nemo’, sabe do que estou falando.
Se você olhar o mapa acima, poderá ver que há várias correntes marítimas indo e voltando; se você estiver no Brasil e só deixar a vida te levar, acabará ali pela África do Sul. A corrente sul de Moçambique pode ser um dos motivos da dificuldade de chegar à Índia durante as grandes navegações.
A maioria dessas correntes são circulares pois acabam encontrando uma grande massa de terra para interrompê-las.
Se você olhar bem pro mapa, porém, verá que há uma parte do planeta que não tem nenhum impedimento. É ali no sul, na corrente circumpolar antártica. Essa parte do oceano gira sem nada para diminuir a velocidade ou mudar a direção, igual você de carrinho de rolimã descendo um barranco — uma força da natureza imparável.
E aí que o lugar que a Inglaterra achou que seria suavinho atravessar é o que hoje chamamos de Terra do Fogo, no sul da Argentina, um arquipélago gelado, inóspito, e com o mar constantemente bravio.
Para evitar enfiar o navio nas ilhotas, o capitão falou: vamos dar a volta por baixo, pelo Cabo Horn, vai ser bem mais tranquilo navegar lá… só que ele esqueceu que ali é a porra da corrente circumpolar antártica, onde o mar não tem freio. Já sabe, né?
É claro que deu errado
Primeiro que eles chegaram no cabo Horn tudo fudido: o escorbuto, doença que mata — e cuja cura é só comer uma laranjinha de vez em quando — já tinha arregaçado boa parte da tripulação. O clima estava péssimo, não dava pra ver nada, o mar agressivo tirava os navios da rota e o número de marinheiros saudáveis para manejar o Wager era muito pequeno. A frota — seis navios — lutou para se manter junta mas não conseguiu. No fim da tempestade, o Wager se viu sozinho, sem saber pra onde ia, com a tripulação sem moral nenhuma e um capitão que insistia em continuar a viagem.
Eu até entendo o capitão Cheap. Voltar seria um ato de deserção, ou seja, pelotão de fuzilamento. Se ele naufragasse e sobrevivesse, seria alvo de uma corte-marcial que tiraria todos os seus privilégios e o condenaria à uma vida de pobreza e vergonha. Ele não arredou o pé: disse que ia continuar até encontrar os navios da frota, dane-se que tava geral morrendo e sofrendo pra trabalhar.
Tem que vestir a camisa da empresa! Tem que ter mindset de sócio!
Só que Cheap — e espero que todo mundo que pense do jeito acima — se fodeu grandão.
O Wager naufragou em maio de 1741 após bater em uma ilhota desconhecida há 1600 km de Santiago. Hoje, ela é chamada de Ilha Wager.
É claro que não acaba aí
O mais foda dessa história é que ela tem registros bem claros de tudo o que aconteceu sob o ponto de vista de diferentes pessoas. Para que o motim (que aconteceu, óbvio, ninguém aguentava mais Cheap, esse cuzão) não levasse todo mundo pra forca, todos os envolvidos descreveram tudo o que aconteceu, com detalhes mínimos, em seus diários de bordo. É assim que a gente sabe, por exemplo, que nem Cheap se surpreendeu quando o renderam e tomaram o controle.
E é assim, com esses registros super detalhados, que o jornalista David Grann escreveu o magnífico ‘O Wager: Um Conto sobre Naufrágio, Motim e Assassinato’ (a ser publicado pela Companhia das Letras no Brasil). Li em inglês (hmmmm chique demais) e atesto: que livraço da porra.
David Grann é famoso. O cara escreveu ‘Assassinos da Lua das Flores’, sim, o livro que baseou o filme do Scorsese que concorre ao Oscar, então já era uma aposta (heh) certeira que a leitura seria prazerosa.
O que me surpreendeu no livro foi basicamente o que me surpreende na humanidade: a gente não presta! As pessoas são horríveis! A vingança nunca é plena!
O livro conta como os caras sobreviveram ao naufrágio, fugiram da ilha, naufragaram de novo, foram ajudados por nativos, passaram a perna nos nativos (!!!) e foram capturados pela Espanha.
SIM, a galera sobreviveu para contar a história. Porém a parte mais legal dessa sobrevivência eu vou deixar pra você descobrir por conta própria, pois quando eu li eu disse, em voz alta, sentadinho esperando minha vez para fazer um exame de sangue: “esse Cheap é um baita de um filho da puta”.
Minha história favorita é do cozinheiro: o cara com mais de 60 anos (raríssimo para marinheiros) sobreviveu aos dois naufrágios, ao motim, às brigas entre os marinheiros, e à extrema fome. Quando foi alimentado pelos nativos da região, comeu demais… e morreu.
O cara morreu de tanto comer.
Sabe????
Se você for mais das telinhas — e estiver disposto a esperar uns anos — o próprio Scorsese já planeja um filme com o Leonardo DiCaprio sobre o livro. Tomara que DiCaprio seja Cheap só pra eu ver ele tomando no cu com areia igual no Assassinos da Lua das Flores’.
Se você já leu o livro ou se planeja fazê-lo, não deixe de comentar ali embaixo ou de responder à esse email.
Rapidinha
E Não Sobrou Nenhum
Pela primeira vez na vida, ouvi um audiolivro — escolhi “E Não Sobrou Nenhum”, clássico da Agatha Christie, que já havia lido na adolescência — mas, agora, em inglês. A experiência foi complicada; o livro é divertidíssimo, me deixou atento e ansioso como todo bom thriller, mas sinto que perdi um tanto da diversão pelo formato em áudio. Não sabia direito quem eram os personagens, seus nomes e características, e quem estava falando o que, para quem. Não desisti do formato — comecei a ler um Terry Pratchett para ver se o tom humorístico funciona melhor. Venho com novidades assim que as 8 horas de livro passarem. Ah, ainda quero testar com um livro em português para saber se o problema é a barreira de linguagem. Veremos.
The Kitchen
O filme que debuta Daniel Kaluuya (o ator de Corra!) na direção é… médio. Há uma mensagem interessante, cenas bonitas, boa atuação, mas não engaja tanto assim. Vale ver? Claro, é um filme que trata de classe, capitalismo, violência policial, paternidade, morte, uma série de temas. É uma obra-prima? Não. Porém, se Kaluuya dirigir mais, estarei lá para assistir.
Poor Things
Só não dei 6 estrelas pois o Letterboxd só vai até 5. Vou ter que escrever mais sobre o filme em uma edição futura.
Chants of Sennaar
Passei exatas 6h45 jogando essa obra de arte que é Chants of Sennaar.
Seu personagem não entende nada do que estão falando, então toma como atividade traduzir o idioma de cada classe de cidadãos dessa estranha torre.
O jogo é isso: traduzir, interpretar, presumir, anotar — com uma ótima mecância que te ajuda a completar seu diário de glifos e significados. Ele traz diferentes idiomas, dependendo da classe das pessoas, e você tem que entender não só o significado, mas a gramática — por exemplo, os artistas colocam o objeto antes do sujeito, enquanto os cientistas, não. Já os guerreiros tem um sinal para simbolizar plural, enquanto os trabalhadores duplicam a palavra no singular para simbolizar isso — “homem homem” significa “homens”.
ABRAÇO, FERDINAND DE SAUSSURE.
Parece complexo — e é — mas o jogo te leva com tranquilidade para os próximos níveis e dá para saber sem muito problema o que deve ser feito em seguida. Ele tem problemas, claro, mas as qualidades brilham muito mais forte.
E outra, num mundo com jogos de 60 ou 70 horas, pensar em investir 7h em um jogo lindo e bem ambientado é tranquilíssimo, vai.
Disponível no Steam. Review no backloggd aqui. Recomendação do grande Gustavo Krajuska.
Axiom Verge 2
Comecei e abandonei o metroidvania Axiom Verge 2 — o mesmo destino do primeiro da série. É um ótimo jogo, sim, mas tem um pecado semelhante ao primeiro: entendo que jogos do estilo precisam ser crípticos (para dar aquela sensação de “sou foda” quando você descobre um novo caminho), mas ele pesa demais no “não vamos te falar para onde ir, se vira”.
Fiquei travado várias vezes até que desisti de vez — e olha que sou fã DEMAIS do estilo, vide ter jogado pra caramba Hollow Knight, ter amado The Messenger, e destruído ambos os Oni.
Universim
Nesse jogo você é deus. E aí você descobre que ser deus é chatão.
A ideia era ser um sucessor espiritual de Black and White 1 e 2 (2001 e 2005), dois jogos do gênio e absolutamente doido Peter Molineaux. Neles, você é um ser todo poderoso e cuida de uma civilização, tem magiazinhas especiais pra poder fazer todo mundo feliz (ou jogar um tornado em cima da cidade), e uma besta mitológica gigantesca que segue suas ordens — Universim não tem a besta, tem o resto mas… falta o molho, sabe?
O jogo é bonitinho, os humanos (chamados de nuggets) são engraçadinhos, mas o jogo não oferece desafios. Sua civilização vai crescendo, o tempo vai passando, e… só. Outra coisa que atrapalha bastante é a pesquisa baseada em tempo — ou seja, não importa se sua civilização é avançadíssima e se você tem muuuuitos cientistas; a pesquisa que demora onze minutos vai demorar onze minutos (da vida real, sim).
Bem chato. Review no backloggd aqui.
Cyberpunk 2077
Resolvi dar mais uma chance ao FPS/RPG e pô, não é que a versão 2.0 ficou bem legal? Tô no level 54 e acabei de acabar o conteúdo do DLC. Quando finalizar a missão principal volto aqui para falar bem do que gostei e reclamar do handling de absolutamente todos os carros.
Papo nerdola
Essas conversas de jogo interessam? Se sim, comente ali embaixo (ou responda ao email) “angelo, fale mais de jogos”!
Boletimverso
Já que você tá com tempo livre, por que não ler…
Deixa os garoto brincar
Fiz o seguinte comentário sobre esse texto:
My father and stepmother died 7 years ago in a car accident, leaving me (at the time 27), Lucas (26), Theo (6), and Arthur (6), four brothers (we don't believe in the concept of _half brothers_) that were left to fend for themselves. We're, respectivelly, 34, 33, 13 and 13 now.
Lucas took into his own hands the raising of the kids, even doing a legal stunt to keep the parenting rights — the laws say the grandparents keep the kids and, well, Lucas didn't do law school for nothing.
While the kids' parents raising was very different from mine and Lucas' — our mother, dead in 2007, was much more into the "let the kids play" than Andreia, father's new wife — so when everyone was gone Lucas insisted in changing this educational model. The kids were meant to break their arms, scrape their knees, hurt their feet and come home covered in mud after a rainy day. That, for Lucas, was safe play. Staying at home playing videogames was dangerous.
Now, both the kids — taller than Lucas and I, in the start of dreaded teenage years — do _everything_ by themselves. They ride their bikes to school and back, they get groceries at the market, they visit the nearby skatepark, they go to their english classes. We're in Brazil, so this kind of independence is difficult to see and it's also dangerous.
But danger, as Lucas says, teaches. One of these days Theo fell from his skateboard and hurt his hand and knee. He walked home, bleeding a little, to take a shower and tend to the wounds. He didn't cry or complain "I'm hurt, I fell". He was angry because the road had a bump, and now his hand would hurt for some days. And that's it, let's throw in a bandage and good luck, that's life, let's go.
I'm proud that they are growing tough and ready to face some of life's challenges, and pretty sure they are tougher than most of their friends. I hope we're not raising boys that are afraid to cry or that think feelings aren't nice. Teenager years suck and Lucas and I have no clue what we're doing — we never chose to have kids and now we act as father-and-father to our brothers.
All we've got is hope.