Tattoo Tour (parte 3)
A terceira parte da jornada fotográfica pelas tatuagens que marcam meu corpo
Comecei essa série nesse post, leia-o primeiro se quiser ver tudo desde o início. A parte 2 está aqui.
Essa edição traz algumas tatuagens com bastante peso emocional, se preparem pro textão.
Uma toda sua, uma nada sua
Mandei uma mensagem para minha tatuadora dizendo que queria tatuar a cabeça. Ela prontamente topou a ideia, marcamos a data e aguardamos. Ao chegar no estúdio, percebi que nem eu, nem ela, havíamos conversado sobre o que tatuar.
Acho que foi ali que eu percebi como confio no trabalho da Jana. Ela me mostrou umas ideias que tinha tido no dia e que achava que tinham a ver comigo. Eu não só amei como escolhi uma e a tatuei no mesmo dia. O crânio de corvo com uma plantinha (sei lá qual é) simboliza bem a confiança que eu coloco nos artistas ao meu redor — essa tatuagem é inteira da Jana, sem nenhuma sugestão minha.
Aproveito essa foto para falar de uma tatuagem completamente oposta. “A fé sem obras é morta” é uma releitura de um versículo bíblico (Tiago 2:17). Era uma frase muito dita pelo pastor da igreja que frequentava quando era cristão.
Quando tatuei a frase já não era mais crente há anos, porém ainda tinha alguns princípios vindos do cristianismo que mantinha perto de mim, como esse. Não adianta nada acreditar muito sem ir lá e fazer as coisas acontecerem.
Essa tatuagem também é da Jana, mas foi feita em um acordo de amigos: eu escolhi a frase, a fonte (de propósito uma bem brega, meio de filme de terror), e o local. Ela apenas tatuou, sem pensar muito se era o estilo dela ou não. Talvez foi esse o momento dela confiar em mim como cliente?
Acho que vi um gatinho
Minha tatuagem mais recente (no momento desse texto) é a onça-pintada feita pela grande Helena Matuti. Queria fazer o outro lado da cabeça e resolvi lançar esse animal bem brasileiro, numa pira mais tradicional. Gosto que a pontinha do focinho atravessa minha linha do cabelo, ou seja, mesmo se eu deixá-lo crescer, todos vão saber que tenho uma tatuagem na cabeça. Basicamente é uma tatuagem no rosto, pensando bem.
Freud explica
O briefing foi: queria muito tatuar “Saturno devorando um filho”, de Goya, mas vai ficar muito aterrorizante. Como a gente pode, então, traduzir isso numa tattoo numa pira meio grega e clássica?
Foi nessa que a Jana me entregou esse desenho pesadão que cobre minhas costas. Saturno, ou Cronos, segura sua foice tradicional e se prepara pra mandar pra dentro um bebezinho fofinho (olha os pezinhos dele).
Gosto de tudo envolvendo esse mito; o fato de Cronos capar o pai Urano com uma foice, de querer reverter as profecias sobre ele, dele engolir os filhos sem mastigar, de Zeus ser escondido e Cronos engolir uma pedra, dele vomitar os filhos engolidos no passado e daí nascerem, adultos e prontos pra guerra, Demeter, Hestia, Hera, Hades, e Poseidon.
A tatuagem também simboliza o velho e o novo em contraste — como se o velho quisesse impedir o novo, mesmo com suas boas intenções, sufocando-o com suas vontades e engolindo-o em seus caprichos.
Outra coisa interessante é que confundem Cronos e Chronos, o titã e a entidade que simboliza o tempo — no meu caso, eu misturo ambas de propósito. Em Roma, Crono se tornou Saturno, um dos planetas que regem Aquário (meu signo e ascendente).
Essa tatuagem está incompleta, ainda falta muito sombreamento e uma segunda demão de tinta no sol negro.
Aqui é Brasil
Quando o escritor, desenhista, arte-educador, tradutor e mapista Bruno Müller publicou essa ilustração em resposta à um texto da Jana Bianchi sobre a literatura brasileira, ele não imaginava que eu a eternizaria na pele.
O Boitatá é um animal mítico brasileiro, uma serpente de fogo pronta para atacar quem invade seu território. No desenho de Müller, a cobra é vermelha e tem várias bandeirinhas do Brasil pelo seu corpo — uma ótima brincadeira com formas e cores.
O Boitatá tem muito significado para mim. Ele me lembra um período fértil, de invenções mirabolantes acompanhado de pessoas multi-criativas. Esse tempo talvez não volte, mas sua lembrança será eterna.
A peixa e o gato
Não é bem um “gato”. É um alienígena que mia quando alguém está mentindo perto dele — mesmo se o mentiroso for seu dono (se é que gatos tem dono né).
O personagem da magnífica série Saga, de Brian K. Vaughan, acompanha um caçador de recompensas e o ajuda a encontrar quem tenta enganá-lo — ou o coloca em confusão quando acusa que o próprio caçador é quem mente.
Em uma noite qualquer, publiquei uma foto do quadrinho no Instagram, e após alguns minutos um tatuador ex-amigo (é foda) me mandou a mensagem: “sou louco pra tatuar esse gato”. Mandei um “bora?” e em vinte minutos estava em sua casa pronto pra lançar a braba.
Tem significado? Porra, é um gato que identifica mentiras e, na tatuagem, ele tá dizendo “Lying”. É como se tivesse gente mentindo ao meu redor o tempo todo, ou até uma lembrança que eu posso estar mentindo pra mim mesmo. Claro que tem significado.
Ele é acompanhado de uma tatuagem que tem um valor emocional pra mim bem complicado de descrever.
A sereia, ao seu lado, foi tatuada pela perfeita Amora Bettany — dos jogos Towerfall, Celeste, e uma pá de outras coisas. Por incrível que pareça, não era fã da Amora por causa dos jogos, e sim por ela ter sido uma das primeiras pessoas que vi falando sobre poliamor abertamente em uma entrevista.
No pouco tempo que nos vimos em pessoa — o bastante pra eu me apaixonar completamente, claro — ela estava tatuando além de fazer as ilustrações pra games. Agarrei a oportunidade de fazer algo com sua cara e combinamos uma sereia espacial. Tatuagem envelhece e não dá pra ver direito na foto, mas o capacete da sereia é cheio de água e tem até um peixinho dentro 🥰.
Depois de alguns meses, Amora foi pro Canadá e nosso contato minguou pra algumas mensagems esporádicas. Acho engraçado como lembrar dela ainda me dá um quentinho no coração, mesmo sabendo que tinha uns sentimentos bem difíceis de explicar, muito unilaterais. Não tem problema, eu gosto de amar largado.
Entre na minha casa e…
Kleber Mendonça Filho é meu diretor brasileiro favorito. Seu trabalho fala comigo de um jeito especial, e ao saber que ele fazia um filme mezzo-distopia mezzo-sci-fi, fiquei muito animado.
Não esperava que Bacurau me desse o soco que me deu.
Sabendo que ainda vou escrever sobre KMF e sua obra aqui, não vou me extender sobre os filmes, só que queria eternizar a cena de seu último filme (na época) e a frase que resume a existência humana contemporânea. No fundo, no fundo, a gente tá sob o efeito de um poderoso psicotrópico, querendo ou não.
Fim da parte 3
A quarta — e última, ufa — parte dessa série chega em breve. Não se esqueça de se inscrever para recebê-la.
Oi, Ângelo. Não entendo exatamente por que, mas eu gosto muito mesmo da sua Newsletter. Seus interesses não têm nada a ver com os meus, acho que dificilmente nos cruzaríamos por aí, então a única explicação é que a sua escrita consegue me encontrar num lugar muito especial. Adorei estas edições sobre as tattoos e as fotos são lindas. Pensei muito sobre minha mãe e fiquei com vontade de tatuar uma orquídea. Um beijo e espero que você continue escrevendo!