Suspenda sua descrença
Como nosso cérebro pega peças e nos faz consumir tudo de um jeito melhor
É muito louco como eu, ao ler um livro de piratas enquanto estava em um navio, realmente achei que o cheiro de sal e o balanço do mar vinham do livro e não da vida real. Por um segundo — talvez meio, ou um milésimo de segundo — eu acreditei sem pensar duas vezes que aquilo não era a realidade. É claro que logo depois eu percebi que eu estava só lendo um livro em um literal navio, com literal cheiro de mar pois estava ali sobre ele, navegando, e que o livro talvez estivesse me contagiando por demais
Pensando bem, poderia ter sido os 300mcg de LSD que mandei pra dentro, nunca saberemos.
Nesta edição do Cronofobia:
Suspensão de descrença é bom demais
Deadpool & Wolverine
Devs
Sunny
Acredite se quiser — e você quer!!!!
No meio do musical O Rei Leão — peça da Broadway adaptada pro Brasil por ninguém menos que Gilberto Gil — há uma cena em que uma manada de gazelas salta de um lado do cenário para o outro. É uma cena um tanto quanto insignificante, que possívelmente só está ali para criar ainda mais ambientação — você não está mais no teatro. Está no Quênia.
Mais ou menos 12 gazelas pulam.
Não há nenhuma gazela no palco.
Não gosto de musicais — salvo Moulin Rouge e Rocky Horror — porém mesmo assim já assisti vários. Se for cinema, eu passo longe, mas no teatro eu ainda consigo aguentar e dar o braço a torcer.
Meu irmão me convenceu a fazer esse rolê familiar e lá fomos nós todos assistir ao Rei Leão. Vou deixar esse trailer da apresentação mas acredite: nada, nada, NADA é igual estar lá e ver isso tudo ao vivo.
Assim, eu não gostei da parte musical do musical? Não. É a vida. Não é pra mim. Eu gosto de música ou de teatro, não de música e teatro.
Mas… o figurino? A ambientação? As pessoas vestidas de animais fazendo puppet ao mesmo tempo que cantam e pulam pra lá e pra cá? Pai celestial, que coisa maravilhosa. Só isso já vale o espetáculo.
Você deve imaginar “ah, tem um monte de gente vestida de Leão, o que tem de tão impressionante?” e eu te respondo: bicho, cê nem tá ligado.
Por exemplo, olhem a foto abaixo.
Esse, da esquerda, é o Mufasa, o atual rei leão. Tá vendo que ele tem um tipo de chapéu de leão? Todos os personagens tem isso — algo que simboliza que animais eles são.
Porém o chapéu de Mufasa (e Scar) não é um chapéu. É um quase chapéu que, preso às costas do ator por um mecanismo, vira uma máscara quando o ator toma uma posição de agressividade. Vejam Scar e Mufasa na foto abaixo.
É legal demais quando o ator se mexe um pouco e, sem puxar nenhuma cordinha ou apertar um botão, vira um leão. Pois é isso que você tem na cabeça: eita porra, agora ele é um leão mesmo, na pose do felino, prestes a dar o bote.
Os animais grandes impressionam. As girafas, por exemplo, são atores em pernas e braços de pau, com chapéus altos. Já o elefante é formado por quatro pessoas — não consegui entender se alguma delas controla a cabeça do bicho.
Mas o que me tirou do sério mesmo foram os bichos menores. Veja o vídeo abaixo e me diga se essa movimentação do guepardo não é de cair o queixo, com essa elegância ímpar?
Zazu, o papagaio (sei lá que bicho é esse) mentor de Mufasa, é um ator todo vestido de azul que segura um puppet e o faz falar, dar risada, e quebrar a quarta parede. Em certo momento você esquece que são dois elementos — ator e fantoche — até que Zazu ataca o ator que o manipula… ou será que o ator se ataca? Me perdi.
Porém os animais que me fizeram pensar nesse texto são as gazelas do início do texto. Daria tranquilo para vestir uma pessoa dançarina de gazela e fechar o expediente.
Mas os caras são foda e foram além.
A foto lá do começo são quatro pessoas. Cada uma é três gazelas. Elas dançam e saltam como gazelas, em sincronia, fazendo movimentos com os braços e cabeça que te fazem esquecer que são quatro pessoas segurando doze gazelas. Na hora que elas aparecem e começam a saltar, você acredita que é uma manada de gazelas mandando ver no cardio matinal.
Não há como narrar como fica meu coraçãozinho quando eu percebo que fui totalmente sugado pela suspensão de descrença.
É tudo macaco
Eu sou fascinado pela franquia original de Planeta dos Macacos, que iniciou lá em 1968. Charlton Heston é o protagonista, e aqui tá o trailer.
Recomendo demais assistir ao filme porém já aviso: ele começa muito devagar, demora pra cacete pra chegar na ação, mas quando chega, nunca para. Tem macaco caçando humano, macaco enjaulando humano, macaco chimpanzé, gorila, orangotango. Tem macaco em cima de cavalo, macaco cientista, macaco bonzinho e macaco vilão.
Angelo, porra, presta atenção! Não tem nenhum macaco!!!! É tudo gente fantasiada!!!
Mas cara (esse sou eu falando com minha consciência), você esquece! Quando você vê o primeiro macaco e pensa “caraio men, é um cara de fantasia” e depois vê mais dez, e depois vinte, de repente seu cérebro desliga e fala: “tá bom galera neurônios, é macaco mesmo, vamos nessa”.
Logo você entende que quem usa roupa é macaco. Quem usa arma é macaco. Quem fala, constrói, e, bem, comanda, é macaco.
Charlton Heston passa quase o filme todo seminu — saquem o que era um físico de galã na época, 1968 — e quando ele pega um rifle rola todo um frisson, afinal, ele não é um macaco!!!!!
Pontos de exclamação à parte, infelizmente acho que você não vai sacar 100% do que to falando se não pegar o filme pra assistir. Eu recomendo, de verdade, e acho que ele sobreviveu pra caramba os quase 60 anos que se passaram. Tem filme de sci-fi hoje cheio de efeitos especiais que não chegam perto da grandiosidade desse.
A culpa é sua
Antes, uma definição da Wikipedia:
Suspensão de descrença, suspensão de descrédito, da incredulidade ou ainda "suspensão voluntária da descrença" refere-se à vontade de um leitor ou espectador de aceitar como verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção, mesmo que elas sejam fantásticas, impossíveis ou contraditórias. É a suspensão do julgamento em troca da premissa de entretenimento
Uma das grandes questões desse efeito é que ele acontece só dentro da sua cabeça. O diretor não precisa ter sua descrença suspensa para que o filme se realize, nem um designer de games precisa pensar “é mais que um jogo” para que você chore quando um personagem morre.
Eu tenho absoluta certeza que a Robin Hobb não planejou que seus leitores se entupissem de ácido para se sentirem dentro dos navios em seus livros — mas eu o fiz mesmo assim.
A suspensão de descrença é vital para o envolvimento do espectador/leitor/jogador, mas é um recurso que vem de quem consome e acaba em quem consome. Eu falar, aqui, que “são macacos”, pode fazer você pensar “tá maluco, é claramente gente fantasiada” porque você não fez a mesma jornada mental que eu — e nunca vai fazer, afinal, eu sou eu até que (infelizmente) me clonem.
Claro que tem muita suspensão de descrença que vem de ignorância. Por exemplo, os expectadores do primeiro filme, aquele que a galera sai correndo do cinema porque acha que vai ser atropelada pelo trem, não pararam pra pensar “mas porra, um trem faz barulho e não é fucking preto e branco”.
Quem acredita em fake news cai na mesma. As vezes, sem saber, essas pessoas escolhem acreditar — um processo que começa e termina nelas — em algo que foi construído para ser acreditável, mesmo soando como completa ficção. Os autores querem convencer, e as pessoas querem ser convencidas.
Vejo muito isso em relações religiosas. Você quer ter uma resposta, e aquele sacerdote diz ter uma resposta. Você escuta as palavras mágicas e abre a porteira mental para recebê-las. Mesmo elas não tendo som e sendo preto-e-brancas, você acredita que são reais e que vão te atropelar. Você estende as mãos e aceita.
Autohipnose
A suspensão de descrença é a soma do que é oferecido com sua vontade de aceitar. Não há suspenção se você falar “nem fodendo isso é uma gazela”, do mesmo modo que não há se aparecer uma pessoa vestida de Zelda e falar “sou uma gazela”. É uma via de duas mãos: eu acredito nas mentiras que você me contar.
Acho que é aqui que eu encontro o maior problema.
Sabe quando aquela pessoa te diz “você é show + top = shop”? E você responde, quase que imediatamente, “ah para com isso”? Porra, desse jeito você nunca vai convencer seu cérebro que isso é verdade.
A própria terapia em si precisa de muita — mas muuuuita — suspensão de descrença. Você aceitar que falar por meses com aquela pessoa desconhecida vai te ajudar a vencer medos e mudar comportamentos… é muito otimismo. Mas, do mesmo jeito que no filme só tem macaco, terapia funciona.
Fico pensando: qual é a suspensão de descrença que eu tenho deixado de lado? O que a vida me oferece — prontinho para eu acreditar — que eu ignoro pois não acho realista? No que eu quero muito acreditar mas o material é incompleto?
E, utilizando com maestria o método “termine o artigo com uma pergunta para incentivar comentários”, eu pergunto: no que você não tem acreditado, mesmo falando, se vestindo, e agindo igual um macaco?
Espero que possa comentar esse texto acreditando piamente que essa foi uma escolha sua.
Rapidinhas
Deadpool vs Wolverine
Se você gostou de Deadpool 1 e 2, vai gostar desse. Não tem segredo. É sangue, piada de pinto, e quebra de quarta parede. O filme é bem médio, não tem nada de excepcional, e me tirou menos risadas do que eu queria — além de se apoiar pesadamente em todo o universo Marvel. Se você não viu Loki, por exemplo, não assista ao filme. Daria 2,5 estrelas mas alguns easter eggs — tipo a piadinha do Liefeld’s Just Feet — valem meia estrela. 3 no Letterboxd.
Devs
Essa aqui me pegou com força — eu acho que eu gosto do Alex Garland, hein. Ron Swanson Nick Offerman é um Zuckerberg da vez que cria uma tecnologia muitcholoca com computação quântica e manipulação temporal, só que uma galeria da pesada coloca tudo a perder.
A ambientação é do caralho, a trilha sonora é completamente maluca, as atuações são ótimas e eu assisti a série toda em 2 dias.
Oito episódios, série fechada, sem continuação.
Sunny
Apple TV — boas séries — e A24 — bons filmes — se juntam nessa.
Rashida Jones é, de novo, uma pessoa normal enfiada no meio de um monte de maluco — não bastava The Office e Parks & Rec. O marido dela morre em um acidente aéreo e ela descobre que ele não é bem o que dizia ser. O interessante é que a série se passa no Japão, e tem todo um contraste com um mundo no futuro próximo com as tradicionalidades do país.
Tem robô, babel fish, sapatão de cabelo colorido, e Yakuza. Comecei a ver agora e não sei no que vai se transformar ainda.
Por hoje é só, espero que tenham gostado. Até a próxima.
eu sou cadelinha de musical mas ainda não consegui ver rei leão (quero muito)
mas só passei pra reforçar que você é shop!
e agradecer por pregar a palavra da terapia, psicólogas autônomas (eu) aceitam esses testemunhos
botei as duas séries na lista aqui
Como assim é gente fantasiada?!