Pus uma coroa em minha cabeça e me senti ridículo — um mero plebeu fazendo a vez de monarca, sem exército, súditos, ou pátria. O kaftan — um tipo de vestido — cobria meu corpo até os joelhos. As pernas, atrás da meia-calça arrastão, acabavam em um coturno heavy-duty — afinal, queria ser provocante porém rock and roll.
Antes de montar em meu falso-cavalo, pedalar pelo meu falso-reino, e chegar em meu real-destino, me olhei no espelho. Sorri, sabendo que em breve sentiria o efeito do papel com 1V-LSD que passeava sob minha língua — o incentivo químico que substituiria minha vulnerável baixa autoestima com uma sólida autoconfiança — digna de um rei.
Ao chegar, visitei as salas temáticas. Evitei a que parecia uma escola — obrigado, mas não tenho fetiches com essa época — e a que tinha look and feel da ala cirúrgica de um hospital. Sozinho, deitei na cama redonda da sala vermelha e apertei o botão que a fazia rodar. Enquanto via meu reflexo no espelho do teto, pensava seriamente em voltar para minha casa e me proteger de mim mesmo, embaixo da muralha intransponíveis que é meu cobertor.
Balançava os braços, de olhos fechados, na pista de dança escura, enquanto ouvia uma música que misturava chiados eletrônicos e o típico som de obras da prefeitura na madrugada paulistana — ainda batalho para me acostumar com o techno alemão. Fiz contato visual com uma pessoa semi-conhecida, e andei até a ante-sala para uma breve conversa.
“Adorei sua roupa. A coroa é sensacional”, disse ele.
Confesso que parte de meu sorriso foi consequência do ácido lisérgico, mas sei que havia legítima felicidade no ato. A companheira do rapaz pediu para ver a tal coroa, mas hesitou em colocá-la na própria cabeça. “Ela combina muito com seu ar de realeza”.
Franzi a testa. Onde, em meu corpo gordo, coberto por tatuagens com múltiplos significados, formatos, e razões para existir, havia ar de realeza? Rodeado por loiros de um metro e noventa, de bíceps evidentes e abdomens definidos, perfeitos exemplares do übermensch, eu poderia no máximo ser a versão moderna de Robert Baratheon, ou a reencarnação de Charles III. O público feminino, überfrauen, prováveis valquírias mitológicas ou modelos internacionais, claramente não buscariam em meus membros o conforto de um abraço — ainda mais do rei que menos exalava agressividade de toda Bundesrepublik Deutschland.
Como todo elogio, o aceitei com um sorriso, e o descartei com um suspiro.
Me despedi e visitei outro espaço. A droga, fazendo efeito, brincava com meu ambiente, em cores e luzes distorcidas. Ri com minha própria imagem em um dos múltiplos espelhos e decidi aproveitar aquele momento de psicodelia com um pouco mais de conforto.
Em minha busca por assento, acabei no corredor de entrada. Foquei no candelabro com múltiplos cristais coloridos que pendia do teto. Via os penduricalhos mudando de forma, fascinado, sentindo em cada respiração o ar entrando em meu corpo e se tornando força vital. Oficialmente, chapadíssimo.
No corredor havia um único assento disponível — uma cadeira de madeira pintada de prata, com estofado em veludo vermelho, imitando a opulência de… um trono. Me senti confortável, presente em meus sentimentos, focado nos pequenos prazeres fornecidos pela magia alquímica.
Uma pessoa passou pelo espaço, me viu, e sorriu ao fazer uma leve reverência. O segundo transeunte foi mais explícito: mein König, disse. Um homem me viu, ajoelhou na minha frente, beijou minha mão, e, sem dizer nada, continuou seu caminho.
As pessoas foram muito mais rápidas que eu em conectar os símbolos — a coroa, o trono, o “ar de realeza”. Ao entender a razão das piadas, resolvi entrar na brincadeira. Ajustei minha postura, posicionei os braços e pernas como se, de fato, fosse o rei daquele espaço, e reinei.
Passeei pela pista de dança vendo meus súditos se divertindo. Sob minha supervisão, vi pessoas se beijando nos cantos escuros e ouvi sons de prazer vindo de portas semiabertas. Pedi — por educação, claro, afinal meu reinado era absoluto — se podia assistir um trio de belíssimos exemplares da humanidade se desfazendo em saliva e fluídos. Prontamente recebi um “sim, claro”. Ouvi, em minha impossível imaginação, um “sua majestade”.
Voltei ao meu trono e abençoei todos os participantes que por ali passavam. Aprovei quem entrava e me entristeci com quem ia embora. Em um momento, percebi como o poder traz mazelas: de que adianta ser um rei se estou sozinho? Meu reino por um abraço!
Após algum tempo — entre cinco e cinquenta minutos, a droga fazia efeito — alguém entrou e chamou minha atenção instantâneamente. Em contraste às centenas de euros investidos nas vestimentas dos presentes — metros e metros de couro legítimo ou sintético, toneladas de látex transformados em vestidos e ternos, diversos floggers, chicotes, palmatórias, algemas, e correntes —, ela vestia um roupão de banho.
Não era um roupão sexy, de seda e detalhes em renda. Era marrom, grosso, com dois bolsos aparentemente cheios. Em contraste com o sempre-preto das roupas alheias, ela vestia apenas uma calcinha azul-bebê sob o roupão. Nos pés, uma bota de couro — talvez ela também quisesse ser rock and roll.
De primeira, ela disse que adorou meu sorriso. “Todo mundo aqui é sério, tem cara fechada, como se não quisessem interagir entre si”, disse. “Se não fosse todo esse ar de superioridade”, falei, “eu até tentaria me aproximar delas”. Eu contei, também, que estava completamente doidão, o que ajudava na complexidade da coisa. “Um rei assumidamente drogado, não o lider que a gente quer, mas o que a gente precisa”, ela falou.
Conversamos sobre ela ser da Áustria e eu, do Brasil. Falamos sobre diferenças culturais, problemas com idiomas, modernização urbana, e arquitetura sustentável. Falamos sobre sua roupa — quase um statement anti-padrão couro-látex-preto-rock-and-roll — e ela riu. “Fui convidada por um amigo, não tive outra opção do que vestir”, falou. Tirou do bolso uma embalagem de plástico, típica de remédios controlados, perfeita combinação com o que ela chamou de “roupão de avô” — o conteúdo do pote era maconha, mas isso importa menos.
“Seu colo é realmente confortável, ficaria aqui por horas”, ela disse.
Nos beijamos lá pras quatro da manhã. Eu, de coroa, em meu trono de veludo vermelho. Ela, de roupão, sentada em meu colo aconchegante.
Fumamos o beck tarja preta, rimos das pessoas descoladas, acabamos seminus em um dos quartos temáticos — mas não no da escola, deus me livre. Ela me disse que preciso aprender mais sobre techno, eu a prometi que assim o faria — sabendo que talvez nunca mais a veria na vida.
Voltei para casa de bicicleta, sob o sol nascente. Ri belas gargalhadas enquanto pedalava pelas ruas de Munique, escutando o canto dos pássaros matutinos se misturando com o som que ouvia nos fones — Strawberry Fields Forever — depois de uma noite de surpresas, lisergia, e realeza.
A coroa definitivamente entrou para meu figurino oficial. Agora, só falta a autoestima.
Amei a saga da noite. Saudades de me jogar em festas por aí...