Já dizia Joseph Campbell: é sempre a mesma merda:
Uma nova e intrigante atividade surge no horizonte;
Ela vem, faceira, oferecendo múltiplas formas de diversão, embrulhada em dezenas de horas de hiperfoco;
A participação é simples, você só precisa de um negocinho e, pronto, já pode fazer parte do seleto grupo dos hobbyistas;
A partir de certo momento, seu negocinho não parece mais grande coisa, e um negocião surge como alternativa';
Dinheiro é gasto, tempo é investido, e logo logo seu negocião se torna um negocinho, o que te leva a descobrir que existe um negocião ainda mais legal por aí;
Ao invés de diversão e alegria, você recebe falência e desespero;
Superlativos — e misquoting — a parte, dá para entender onde eu quero chegar: a sedução do equipamento é uma das maiores desgraças do artista.
O Caixeiro Viajante do Inferno
A série animada Big Mouth, que muita gente não assistiu mas deveria, apresenta sentimentos e vivências adolescentes personificadas de diversos modos. A puberdade é um monstro grosseiro e excitado, a depressão é um gato que parece muito confortável, a ansiedade é um mosquitinho chato e insistente, e a vergonha é David fucking Thewlis.
Se a série retratasse a vida de alguém acima dos 40 anos com uma aspiração artística, com certeza haveria o Monstro do Equipamento. Esse ser abismal talvez se pareceria com um aqueles vendedores que vão de porta em porta oferecendo seus produtos, ou pior, com testemunhas de Jeová. Sua função é clara: fazer você gastar seu precioso dinheirinho com algo que você provavelmente não precisa.
É óbvio que, dependendo do hobby, algum equipamento é necessário. O problema é qual.
Quando tinha 20 anos comecei a fazer aulas de trompete, e meu professor foi direto: “se um trompete profissional custa três mil, você não pode gastar mais de um terço em um instrumento para iniciantes”.
Ele dizia isso enquanto limpava seu trompete importado de dez mil reais (em 2010!!!), mostrando como as válvulas basicamente se mexiam sozinhas enquanto ele tocava. Meu trompete, adquirido por mísero R$ 500 — que, na época de estudante, foi parcelado em 10x — precisava da força de três praticantes de bouldering para ser tocado, e era uma piada para um trompetista profissional.
E aí que está o negócio: para um profissional. Eu não era nem de longe um profissional (e nem serei, abandonei o trompete após três meses de aulas) então porque cazzo eu ficava com os olhos brilhantes toda vez que via um instrumento que custava um rim e meio estômago? No fim das contas, eles faziam a mesma coisa que meu instrumento iniciante: eu assoprava de um lado, apertava um botãozinho, e o som saía do outro lado. Mas não, eu precisava daquele equipamento.
Uma câmera pica
Há algum tempo visitei meu amigo Giovanni Bello, fotógrafo e videomaker da BBC Brasil em Londres, em uma viagem tão eletrizante que nem consegui colocar em palavras nessa newsletter (sorry, Bello). Nessa viagem, minha vontade de fotografar voltou com a força de mil titãs, e logo comecei a pesquisar equipamentos para poder retornar ao hobby.
É claro que, como já trabalhei com fotografia há 10 anos, não me considero mais um iniciante, mas um semi-profissional. Nessa condição, não posso apena comprar uma Sony Cybershot e sair por aí tirando fotos com zoom digital 🤮, foco automático 🤢 e sem fotometria manual 😵. Obviamente eu precisaria de uma câmera pica, uma que fosse boa o bastante para meu triunfal retorno para esse hobby caríssimo.
Em um tempo passado, eu diria “tá amarrado em nome de Jesus, espírito obsessor”. Hoje, dou aquela risada de meia-boca e penso: a lá o Caixeiro-Viajante do Inferno puxando meu pé à noite.
Estava quase fazendo uma dívida considerável — em torno dos 2 mil euros — para ter a câmera dos sonhos, se nem mesmo sei se vou conseguir voltar com meu hobby do jeito que eu quero.
Na ponta do lápis que eu roubei do trabalho
Antes de pensar que eu estou desclassificando qualquer busca pelo equipamento perfeito, saiba que eu acredito que necessidades distintas precisam de respostas especiais. Eu ainda vou comprar a câmera pica, só vou me planejar melhor para não entrar em uma dívida desgraçada e ferrar meu orçamento anual.
Meu intuito com esse artigo é — além dele ser um grande apoio emocional para minha futura compra — te encorajar a pensar mais ou menos sete vezes antes de cometer a compra daquela guitarra nova.
No Brasil fiz um curso muito bom de xilogravura, no Ateliê Piratininga (recomendo fortemente), e queria voltar à prática aqui na Alemanha. Prontamente fui na Amazon e selecionei todas as coisas que precisava para começar a gravar em linóleo: placas, goivas, vidro, tinta, rolinho, papel. Antes de apertar o botão, refleti: eu vou ter tempo para fazer isso? Vou conseguir conciliar com meus outros doze hobbies? Vou ter onde guardar material? Porra, vou ter onde gravar essas paradas?
Desisti da compra e não me senti um artista fracassado, só alguém que tem um pinguinho mínimo de responsabilidade. Tenho outras prioridades no momento e essa atividade pode esperar mais um pouco com certeza.
Quero voltar a fazer música e já surfei em páginas e páginas de equipamentos maravilhosos — saudades Ableton Push 2 — mas não comprei nenhum. Não tenho a) dinheiro b) tempo c) espaço para isso. Decidi que vou fazer essa aquisição num futuro próximo (antes da câmera pica) mas combinei comigo mesmo em comprar algo barato e iniciante, que me forneça só o necessário para minha intenção — ou um teclado para o retorno à prática, ou um violão acompanhado de aulas em uma escola de música.
Larga o osso
Não encorajo a desistência — se bem que, sim, as vezes encorajo — mas a análise; para fazer academia não é necessário aquele set de roupas da nike que custam mil dól, para escrever não é necessário assinar aquele software de noventa reais por mês, para começar a programar não é necessário comprar aquele curso que todo mundo tá falando e se endividando para fazer. Calma, caralho. Comece pequeno, com o mínimo possível, e se o tempo passar e a frequência da prática aumentar, aí sim gaste todo o dinheiro do mundo com o que você quiser.
Esse é um dos motivos pelo qual eu não critico quem gasta cinco mil reais num Playstation 5 — o videogame é meu hobby favorito, e só eu sei quanto tempo passo jogando e como isso é importante para minha saúde mental. Não vejo esse dinheiro como desperdício, mas como investimento em mim mesmo.
Se você comprar uma bicicleta xurumelas para fazer trilha e ela quebrar de tanto uso, parabéns! Você subiu de nível e agora consegue analisar a compra de uma bicicleta feita para trilhas, mais cara e cheia de rebimbocas e bricabraques totalmente desnecessárias para o ciclista comum.
Compôs um álbum sem vergonha na sua versão piratex de Ableton Live e se vê fazendo música cada vez mais? Talvez aquele piano digital ou um controlador midi seja uma boa alternativa, agora que você tem dados que seu hobby é algo mais constante.
Se você começar algo e ver que o negócio não vai muito pra frente, talvez um equipamento melhor ajude a prática a se tornar mais frequente, mas na grande maioria das vezes isso é uma falácia — que custa muito caro.
Largue o osso, comece com o que você tem na mão, e depois de um tempo reavalie sua vontade de gastar 1599 € em uma Fujifilm X100V.
Estava precisando desse texto mais do que dos patins que eu quero muito (mas que ainda consigo aguentar uns meses pra comprar)
Penso muito nisso quando olho para minhas aquarelas. Pintar é um hobby, mas já tenho algum cacife para saber que algumas tintas para estudantes não me servem. A tentação é comprar todas as pastilhas profissionais que me aparecem na frente, mas... Primeiro, não tenho o $ e, segundo, será que me divertiria ou sentiria-me mais pressionada em "pintar direito" (coisa pela qual não tenho interesse, posto que é um hobby, caraio, não é para ser mais uma fonte de estresse)? Enfim, questões, questões...