A maldição e bênção do diagnóstico
Tomar remédios para ficar normal ou fingir normalidade ao tomar remédios?
Será que você realmente é dodói da cabeça ou que você precisa desse remedinho? Será que já não tá na hora de se entupir de Rivotril? Será que essa galera da medicina realmente sabe do que está falando?
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Nesta edição do Cronofobia:
A maldição e bênção do diagnóstico
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Podcast Cronofobia: o retorno
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A maldição e bênção do diagnóstico
Não faço ideia de onde veio esse sentimento, mas fiquei tristão quando parei de tomar antidepressivos. Do momento em diante, em minha mente, eu não poderia mais colocar a culpa na depressão, afinal, nem remédio eu tomava.
Sim, pessoa leitora, eu sou lelé da cuca né?
Antes de tudo, é importante frisar que eu sei que minha experiência é única — como a de todo paciente psiquiátrico. O que escrevo aqui não pode ser levado como uma generalização do que é viver sob o efeito de um poderoso psicotrópico antidepressivos e reguladores de humor. Também não incentivo ninguém a parar de tomar remédio do neida, mas de ter um acompanhamento médico de qualidade. Minha intenção com esse artigo é relatar, não é convencer.
Fui diagnosticado com o CID 10 F41.2 — Transtorno Misto Ansioso e Depressivo — há 10 anos. Desde então, experimentei um sempre mutante coquetel de remédios. Alguns deles me faziam feliz, melhorando minha depressão, mas um pouco feliz demais, atiçando a ansiedade. Outros me faziam calminho, calminho, quase “talvez eu queira parar de viver?” calminho.
Passei por médicos que me atoxaram de química, outros que tentavam ao máximo me dar a dose mínima do remédio mais fraco. Alguns deles condenavam meu eventual uso de psicodélicos, outros viam o cogumelo e o LSD como caminhos para o entendimento da psique e como tratamentos alternativos — mesmo não dizendo isso oficialmente e sob juramento.
Os médicos alemães são conhecidos pelos imigrantes como quem nunca receita remédios. Nos meus 18 meses morando em Munique, tive crises de labirintite, problemas estomacais, e uma gripe especialmente forte. Nos três casos as primeiras receitas foram “chá e descanso”, e eu querendo apenas que enfiassem uma agulha no meu cu e acabassem com meu sofrimento.
Porém, mesmo reclamando da falta de tóxicos, foi lá que comecei meu desmame e me livrei da responsabilidade das pílulas diárias.
So crucify the ego, before it's far too late
And leave behind this place so negative and blind and cynical
And you will come to find that we are all one mind
Capable of all that's imagined and all conceivable
So let the light touch you so that the words spill through
And let the past break through, bringing out our hope and reason
Não lembro bem quando tudo começou, mas a sensação de não querer sair da cama era avassaladora. Apesar de ainda conseguir trabalhar, os dias pareciam mergulhados em uma piscina de lodo — tudo era verde, triste, e moroso. Um amigo próximo que entendia bem do assunto,
, sugeriu que eu procurasse ajuda profissional.O efeito dos medicamentos psiquiátricos não foi imediato — leva tempo. Gradualmente, a vontade de desistir diminuiu e retomei minha vida funcional, embarcando em diversos projetos… até demais.
Foi aí que meu psiquiatra percebeu que talvez ter controlado minha depressão tenha libertado outro monstro — há dois lobos dentro de mim, etc — e que agora eu surfava em uma onda ansiosa e hiperativa, agarrando muito mais do que conseguia segurar e prontinho para explodir.
Lembro como se fosse ontem, infelizmente. Estava em casa, olhando para o computador, e hiperventilando. Não sabia o que “hiperventilando” significava, nem a razão das minhas mãos estarem formigando, da minha visão estar turva, do meu peito doer.
Até achei que era infarto, mas alguns sintomas não batiam ou faltavam. Eu chorava pensando que não podia ficar doente naquele momento, afinal, tinha tanta coisa para fazer.
Por algum milagre, consegui chegar ao consultório de uma psiquiatra. Entrei chorando, desesperado, pedindo ajuda. Falava rápido demais, me sentia desesperado, só queria que aquela crise passasse. Pedi uma dose cavalar de Frontal, alguma coisa na veia, um mata-leão, um soco na cara.
Ela me fez respirar fundo.
Segui suas instruções e busquei um novo psiquiatra recorrente. Logo, lá estava eu com uma nova droga diária como parte do meu café da manhã. Voltei a viver sem o que eu descobri serem crises de ansiedade.
Em retrospecto, percebi que eu sempre havia tido essas crises, só que não sabia nomeá-las. Quando dava aulas de inglês muitas vezes me trancava no almoxarifado, em completa escuridão, apenas para respirar fundo. Quando levava essas questões para meus então amigos e família, recebia o feedback que era frescura, afinal, era um homem macho peludo e masculino, não podia ficar de bobeirinha achando que vou morrer a qualquer momento.
Uma das morais dessa história é que o tratamento é sempre flutuante. Quando achei que o Escitalopram havia solucionado todos os meus problemas, descobri que meu pau não subia mais e que, quando subia, eu não conseguia chegar no orgasmo. Quando comecei a tomar regulador de humor percebi que não tinha mais crises de pânico, mas também que não tinha energia para correr daqui até ali. O próximo remédio me fez engordar 15kg e ferrou minha autoimagem — o que adiantava o pau subir se eu me sentia o ser mais grotesco da face do centro expandido de São Paulo?
Quando saí da Alemanha — já desmamado — achei que voltar ao Brasil me faria mergulhar novamente nos fármacos. Mas não! Quem diria* que apoio emocional da família, alimentação saudável, e exercício físico constante me trariam benefícios mentais?????
* todos os médicos, né.
This body, this body holding me
Be my reminder here that I am not alone in
This body, this body holding me
Feeling eternal, all this pain is an illusion
A jornada do diagnóstico é complexa, afinal, os diagnósticos são complexos.
Trago algumas reflexões que venho tendo esses dias. Nenhuma delas é a Resposta Absoluta, mas todas são questões válidas.
Peguei essa thread do Xuitter do @NTFabiano sobre esse artigo científico e logo a primeira imagem me chama a atenção — sim, sou uma putinha da infografia, não é surpresa pra ninguém.
Esse gráfico mostra todas as repetições de sintomas no DSM-5, o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais norteamericano — que, por sua vez, é a principal fonte da medicina mundial do que é doença e o que é frescura.
O DSM-5 é visto como a bíblia do diagnóstico, mas ele mesmo tem tanta, mas tanta coisa irregular, que fica difícil botar fé.
Fabiano diz, por exemplo, que no geral, dos 202 diagnósticos representados, 140 (69,3%) apresentaram pelo menos um sintoma que se repetiu em outro diagnóstico, e 118 (58,4%) em diagnóstico de outro capítulo.
Se, por exemplo, você tem insônia, você pode ter 22 diagnósticos diferentes. Dificuldade de concentração, agitação psicomotora, e humor depressivo são sintomas presentes em pelo menos 14 diagnósticos. Aliás, se você tiver depressão profunda, seus sintomas podem ser encontrados em uma pá de outros diagnósticos.
Da descrição do livro Voltando ao Normal, na Amazon:
Voltando ao Normal é um protesto contra a indústria de diagnósticos, seus tratamentos desnecessários e a medicalização em excesso que vêm tomando conta dos consultórios médicos, transformando emoções e comportamentos da experiência humana em patologias clínicas.
Do abstract da American Psychological Association, em tradução livre:
Qualquer pessoa que viva uma vida plena e rica passa por altos e baixos, estresse, decepções, tristezas e contratempos. Estes desafios são uma parte normal do ser humano e não devem ser tratados como doenças psiquiátricas.
[…] Frances adverte que a nova edição da "bíblia da psiquiatria", o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais-5 (DSM-5), vai transformar nossa atual inflação diagnóstica em hiperinflação. […] [n]o DSM-5, o luto normal vira “Transtorno Depressivo Maior”; o esquecimento na velhice se torna “Transtorno Neurocognitivo Leve”; acessos de raiva são "Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor"; preocupar-se com uma doença médica é “Transtorno de Sintomas Somáticos”; comer demais é “Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica”; e a maioria de nós se qualificará para o “Transtorno de Déficit de Atenção” adulto.
Allen Frances é um dos organizadores do DSM-4 e crítico verbal do DSM-5 e o modo que ele foi criado. Para ele, há uma hiperinflação de possíveis diagnósticos psiquiátricos — todos tratados com um remedinho esperto. Isso faz com que os transtornos mais graves se tornem menos observados, que haja muitos diagnósticos incorretos, e principalmente, que muita gente tome remédios desnecessários — muitos deles viciantes.
Em uma discussão com um amigo psicólogo sobre a comunidade de psicólogos e psiquiatras, ele disse ser importante tentar se afastar das soluções medicamentosas e de diagnósticos cabeludos. “Enchem a gente de remédio para que possamos viver em um mundo torto e desumano, ao invés de olhar para o mundo e dizer: é ele que precisa ser desentortado”, ele disse. “Será que não consigo focar pois sou TDAH ou pois trabalho 12h diárias em um emprego que enfia multitasking e acúmulo de função? Será que tenho insônia pois sou bipolar ou porque não sei se vou conseguir almoçar amanhã, quiçá pagar o aluguel, já que tive meu emprego uberizado e sucateado?”
Um problema constante, segundo o amigo psicólogo acima e outros dois (sim, conheço uma pá de psicólogos) é o autodiagnóstico.
A galera sente um friozinho na planta do pé e já sai nas redes sociais dizendo que tá no espectro autista. Qualquer dia mais triste é depressão. Nem quero citar as pessoas que dizer ter Transtorno Obsessivo Compulsivo e são só virginianas.
O diagnóstico é complicado, claro, mas um colega que começou a tomar Ritalina pois decidiu que tem TDAH é mais complicado que isso.
Na Alemanha conheci uma mulher que colocava seu Transtorno do Espectro Autista na frente de tudo. Ela dizia não produzir bem no trabalho por causa do TEA, de não conseguir cuidar de sua casa por causa do TEA, de ter problemas com higiene por causa do TEA… mas nunca foi num único médicozinho para saber se realmente está no TEA ou se só precisa get their shit together.
Eu entendo pra caralho como o diagnóstico é uma libertação — “ah, então é por causa disso que eu sou um maluco do caralho???” — mas a gente precisa tomar cuidado. Esse monte de possíveis diagnósticos para coisas da vida são uma armadilha.
Quero demais que todo mundo tenha tratamentos cuidadosos e que todo mundo consiga sarar do que tiver para não precisar tomar remédios, mas vá na porra do médico. Eu não troco uma merda de parafuso do meu carro sem levar no mecânico porque não entendo nada de carro, quem eu quero enganar ao me autodiagnosticar?
O diagnóstico (correto e acompanhado) salva vidas.
Uma amiga foi diagnosticada há anos com Transtorno Borderline descobriu, há pouco, que na verdade o que ela tem é TDAH. Ela trocou as medicações e fica claro que sua vida melhorou absurdamente. Os novos psiquiatras dizem que o próprio Borderline é um diagnóstico problemático pois tem muitos overlaps com outras doenças, e que ela foi diagnosticada errôneamente no passado.
Um amigo passou a vida inteira comendo o pão que o diabo amassou até ser diagnosticado com TDAH. Com uma pílula diária, agora ele consegue ter foco. Ele melhorou sua performance no trabalho, seu jeito de lidar com os próprios sentimentos, e entendeu alguns limites da sua própria vivência.
A vida de um amigo de 45 anos fez sentido quando o diagnóstico de autismo chegou. Seu quadro depressivo melhorou drasticamente e seu entendimento de que o que chamavam de frescuras e manias eram parte de seu diagnóstico o auxiliaram a reformar seu casamento e a relação com seus filhos — além de ajudá-lo a entender como pesar algumas responsabilidades.
Uma amiga descobriu o autismo com quase 30 e o integrou em sua atividade profissional. Hoje, ela trabalha com pessoas autistas e consegue entregar um trabalho de empatia muito maior que de profissionais neurotípicos.
Eu desmamei o antidepressivo depois de entender (com meu psiquiatra) que minha atual vida — de volta com a família, no Brasil — demandava uma observação nova, do zero, já que tudo mudou. Precisaria sair da medicação para voltar ao “normal”, e depois avaliar se voltar à ela era necessário ou não. Desde então, estou Super Bem™, e percebi como o remédio me ajudava mas, ao mesmo tempo, me deixava letárgico.
A intenção desse artigo é trazer reflexão.
Eu não quero te convencer que a Big Pharma está interessada na gente ficar cada vez mais drogado (ela está).
Não quero te obrigar a ir numa porra dum médico descobrir se o que você diz que tem é o que você realmente tem (quero sim).
Dito isso, espero que esse montão de informações seja fruto de muita discussão de boteco — ou de mesa de jantar com a família — daqui para a frente.
Fontes:
The British Journal of Psychiatry , Volume 204 , Issue 1 , January 2014 , pp. 85 - 86
Advantages and Disadvantages of the Diagnostic Statistical Manual
DSM-5 two years later: facts, myths and some key open issues
Rapidinhas
Tamanho é documento
Essa edição ficou enorme né? Tão grande que eu preferi nem escrever muitas rapidinhas para não deixá-la ainda maior. Ouvi de algumas pessoas que minhas newsletters gigantes são divertidas, e de outras “pulei metade dela, muito grande”.
Ainda avalio o que fazer com essas informações; se volto com as newsletters semanais — uma de rapidinhas, outra de texto — ou se ignoro e continuo como estou.
Comente aí se você acha que essa news ficou grande demais ou se quer mais é ser preenchido completamente de texto até transbordar 💦.
Podcast Cronofobia
Ano passado iniciei um projeto ambicioso: gravar um podcast com episódios diários de 5 a 10 minutos. A ideia era ser como se fosse um grande audião do zap respondendo pergunta das pessoas ouvintes.
Esse podcast ainda existe mas está em hiato.
A questão é que, agora, eu tenho assinantes pagantes nessa newsletter e, descaradamente copiando a
, pensei em voltar com o podcast Cronofobia só que aqui, para quem coloca um dinheirinho mínimo no meu bolsinho — como forma de apreciação do trampo que eu tenho.Vou gravar uma edição de teste e soltar aqui pelo Substack mesmo. Se ver que tá funcionando, continuo. A regra continuará a mesma: lançarei um canal de perguntas anônimas, vocês perguntam, e eu respondo no podcast. Quem sabe ele vira uma coisa maior e mais elaborada com o tempo?
A ideia é trazer conteúdo extra para quem assina (e incentivar vocês a pagarem um mínimo cafezinho para este que vos escreve).
É isso o que tem para hoje. Vejo você na próxima edição. Beijos!
Cara, muito muito boas suas reflexões. Sou enfermeire em um caps (o que é outro assunto que ta na moda como piada ultimamente e que, nossa, pano pra manga) e o que mais noto é essa necessidade da gente chegar num equilíbrio: diagnóstico e remédio são importantes sim, mas não são tudo, mas são necessários, mas até quando a gente vai individualizar problemas que são sociais e enfim, caos. Maldição e benção
manda textão sim!
em tempos: como sou psicóloga tenho muitas opiniões sobre o tema mas vou resumir em dizer que concordo rs
e acho o podcast uma boa ideia siiiiiiiiiiim